Aviso: Gore, Implicações Terríveis, Crimes.
-O que esse cara fez? - questionou Sethe, vasculhando gavetas.
-Ele é o Reitor da sua Universidade. - Argent explicou, lendo variados documentos - Tenho vários motivos para acreditar que ele desvia uma boa parte da verba.
-Certo, por isso você quer registros das transações dele.
-Isso. Qualquer coisa que envolve dinheiro ou contratos, eu quero ver.
A Aberração viu algo. Por entre as frestas, no meio de duas gavetas, escondido no vão da mesa. Sethe sentiu um frio escalar sua espinha. Rapidamente, pôs sua mão entre o objeto e a face de seu amigo, se virou para ele.
-Quantas vezes você já fez coisas assim?
-Sei lá, umas dez. Por quê?
-O Hit sabe que você faz isso?
-Não. Adoro o Hit, mas ele é certinho demais. - Argent parou sua leitura, olhando para a face de Sethe - Agora, você? Eu confio em você.
Sethe sentiu um leve calor em seu peito, uma pequena alegria. Então, voltou ao seu estado de estresse.
-Qual a pior coisa que você já viu?
-Um cara perdeu o filho e sequestrou um garoto pra substituir o dele.
O coração de Sethe parou por um instante, em dúvida sobre o que fazer. Aquilo era bem ruim, mas, talvez, isso fosse pior. Não sabia reconhecer, essas coisas já normalizadas em sua mente. Melhor prevenir do que remediar, pensou.
-Argent, eu acho que devíamos ir embora. - disse, se aproximando do garoto.
-Eh? Por quê?
-Isso é pior do que você pensava.
Argent permaneceu serio.
-Eu aguento, Sethe, não se preocupe comigo.
Sethe respirou profundamente. É verdade, Argent já viu coisas bem ruins, e isso nem devia ser tão ruim assim. Mas, e se fosse? Superprotegido, talvez não soubesse quão cruel o mundo poderia ser. E se Argent não aguentasse, e se ele quebrasse ou paralisasse? Poderia arriscar?
-Sethe. - ele falou, sua face calma - Me mostra o que você encontrou.
Ok. Caso acontecesse, Sethe se responsabilizaria. Carregaria Argent com si, para fora daquele lugar. Daria um jeito de fazer isso dar certo. Sempre dava. Puxou a gaveta, permitindo que caísse no chão. Argent se aproximou, olhando por entre o vão criado. No fundo, uma… cabeça. Decepada, seus olhos abertos, sua boca fechada forçada em um estranho sorriso pelo que pareciam ser grampos.
Sethe segurou-se para não vomitar. Claro, a cabeça era ruim, mas não era o fim. O pior era definitivamente a substância localizada ao redor, e em cima, da cabeça. Sethe não quis permanecer nessa visão por mais tempo, desviando seu olhar. Olhou para Argent, verificando se estava bem.
E estava. Perfeitamente. Sua face não parecia demonstrar nojo ou apreensão. Não, era uma face de raiva. Não estava nem um pouco afetado pelo que viu? Uma cena tão desconfortável, mas apenas sentia fúria? Sethe apenas se sentiu mais desconfortável.
-Isso é prova o bastante, não? - Sethe falou, tentando disfarçar suas emoções - Colocamos tudo de volta no lugar e chamamos a polícia.
-Ele conseguiu se safar com matar alguém. - encarava o objeto do crime - Acha mesmo que a polícia vai fazer algo?
-Eu quero muito ir embora, Argent.
O garoto direcionou seu olhar a Sethe, sua face agora demonstrando leve preocupação.
-Você tá certo. - começara a arrumar os documentos e gavetas - Já estamos aqui a tempo demais, deveríamos ir.
Liche, acompanhando o Mensageiro e sua esposa, havia viajado por quase o mundo todo. Haviam sidos os melhores tempos de sua vida, sem dúvida. Sua mente, incapaz de escolher uma única memória, saltava de pais em pais, de missão em missão.
Havia aprendido a arte do arco em Delphi, ajudada pela Deusa Apolo. Conheceu o Abismo, na Beirada. O país natal de seu colega, Sidon, e seu país gêmeo, Tiro. O gentil povo de Folkvangr, as brilhantes luzes de Lysande. A opressora atmosfera da Cetate, o lindo deserto de Tenochtitlán.
Havia ajudado inúmeras pessoas pelo caminho, além de finalizado dezenas de missões. Tamur e Lorin haviam lhe ensinado a lutar, havia se tornado forte. Em todo esse tempo, nunca retornou a Varonia. Sentia falta de Cernunnos, claro, mas estava satisfeita, e sabia que ele apoiaria sua decisão de continuar suas aventuras.
Talvez devesse voltar, algum dia.
Rom se sentava na beirada do telhado, Farin sentada em seu colo. Hit preparava carnes em uma pequena churrasqueira, Argent ao seu lado. Sethe chegou atrasado, como de costume. Vendo ele, todos disseram seus cumprimentos e retornaram as suas conversas, por exceção de Hit, que pediu à Argent para ficar de olho nas carnes e correu em direção a seu namorado.
-Oi, Sethe! - falou, se arremessando em um abraço - Senti sua falta!
Sethe sentiu seu corpo tombar em direção à escada que havia acabado de subir. Cravou seus pés no chão, dando seu melhor para aguentar o peso e impacto repentinamente aplicado a ele.
-Oi, amor! - ele disse, re-estabilizado e abraçando-o com todas suas forças - Perdão a demora.
-Tudo bem, bobão. - falava entre beijos - Guardei as costelas pra você!
-Obrigado! - falou, seu estomago instantaneamente roncando - Fiquei correndo de um lado pro outro o dia todo.
-Heh! - se soltou, mas ainda segurava os braços de seu namorado - Mas, por quê? Aconteceu alguma coisa?
-Não, não… Só… precisava comprar algo.
-O quê?
Sethe tirou uma pequena caixa de seu bolso, embrulhada como um presente.
-Hoje faz um ano, né? - sorriu.
-Eh!? Pra mim!? - saltou para trás, seus olhos esbugalhados.
-Uhum. Procurei na cidade toda.
Ele se aproximou lentamente, confuso sobre como se sentir. Sethe lhe entregou a caixa, que foi rapidamente aberta. Um cintilante colar de perolas, com uma gema avermelhada em seu meio. Hit fez algo como “HIII”, em um tom extremamente alto e agudo.
Lan e seu pai caminhavam pelas ruas de uma pequena cidade, planejando seus próximos passos.
-O desenho não funcionou, a corrente não funcionou, o pilar de fogo não funcionou! - Lan exclamou - O que agora?!
-Calma, garoto. - seu pai disse, colocando sua mão no cabelo de Lan - Se acalme e pense. Precisamos de algo que aproveita nossas maiores forças.
-Sua velocidade e mira… Qual minha força?
-Hm. Você faz ótimos planos, sabe de muitas coisas, improvisa bem. Você é um bom estrategista, Lanmò, e é bem inteligente.
-Como isso ajuda?! - falou, batendo seu pé.
-Ora, você que é o inteligente! - riu - Você que tem que descobrir isso!
Os olhos de Lan brilharam como lampadas.
-Já sei! - gritou, saltando de alegria - Ela não é necessariamente inteligente, mas é agressiva e rápida. Se tirarmos a velocidade dela, com uma armadilha imperceptível, então você pode finalizar!
-Como fazemos uma armadilha imperceptível?
Seu sorriso sumiu, se transformando em foco.
-Não adianta só um plano - sussurrou - Eu preciso considerar todos os aspectos. Como fazer, materiais necessários.
-Correto.
-Considerar possíveis falhas, compensar por nossas fraquezas.
-Não, isso é exagero. Ninguém consegue pensar em todas as variáveis, isso apenas vai… - falava, mas Lan não ouvia.
-Resolvi. - determinou - Vamos. Dessa vez, venceremos.
O futuro-medico devorava um prato de costelas em um tempo recorde, enquanto Argent parecia tentar falar algo. Sentavam no canto do telhado, distantes do resto.
-Sethe, consegue esperar um pouco pra eu poder falar contigo? - perguntou, gentilmente.
-Não! - falava, sua boca produzindo sons como uma hiena faminta devorando a carcaça de um elefante.
O garoto bateu sua palma em sua testa, tentando disfarçar sua clara e visível animação. A cada instante, sua alegria parecia desaparecer. Finalmente, Sethe terminou seu banquete.
-Perdão, tava com fome. - disse, lambendo seus dedos.
-Tá tudo bem. - não estava tudo bem.
-O que queria falar?
-Lembra do Reitor?
Sethe congelou.
-Finalmente prenderam ele. - Argent falou, sorrindo - Só levaram treze meses e quatro posts expondo os crimes dele, mas a polícia finalmente fez algo.
-Ah, que ótimo! - respondeu - Já anunciaram o substituto dele?
-Nah, a prisão aconteceu hoje mais cedo. - Argent explicou, sua atenção roubada por uma vibração de seu celular - Bom, melhor eu ir.
-Tão cedo!? - reclamou Sethe, abraçando o garoto - Nem é meia-noite ainda!
-É, mas meu pai ta chamando. - olhou para o céu - Sabe, Sethe, eu sinto que grandes mudanças estão por vir.
“Claro que estão, você tá aqui.”
-E nós dois? Vamos estar no centro de tudo.
“Hm, fico feliz que ele queira me incluir.”
-Te conto mais amanha, ok? Te visito na hora do almoço.
Como um machado ao tronco, como um sino a tocar.
“Isso é importante. O que sera que ele vai me dizer?
Vai? Isso não já… aconteceu? Ainda ocorrerá? Talvez tenha bebido demais…
Não. Não bebi. Eu beberei mais tarde, ainda não. Eu lembro de beber, como se já tivesse bebido. Então por que não lembro de amanha? Por que não lembro? O que impede minhas memórias?
Vamos, Sethe. Amanha. Importante. É importante. Lembre-se. Pense no amanha. Pense no Argent. O que acontece amanha?”
-O que acontece amanha? - sussurrou.
O ar, em sua frente, se partiu como vidro.