Ambos acordaram juntos, acostumados ao horário um do outro, as 6 da manhã. A ideia de que Hit estava irritado com Sethe não passou pela mente de qualquer um dos dois, ambos seguiam suas rotinas matinais como se fosse qualquer outro dia.
Sethe limpou as cicatrizes na palma da sua mão, lavou o rosto, higienizou seus pulsos. Hit preparou café da manhã, cinco panquecas empilhadas, cobertas com chantili. Comeram juntos na mesa da cozinha. Finalmente, Hit lembrou.
-Eu ainda estou irritado com você. - ele disse.
-Claro. Não esperava que fosse me perdoar tão rápido.
-Fico feliz que me conhece tão bem.
-Obrigado. Por tudo isso, eu digo.
-Mesmo que te odeie, ainda te amo. - Hit disse, colocando seus pratos na pia.
-Espero que consiga parar de me amar caso comece a me odiar demais.
-Heh. Não seria melhor evitar me fazer te odiar tanto?
-Você me conhece bem o bastante para saber que isso não é uma opção.
-É, com você, nunca sei o que esperar.
-Pelo menos torno sua vida mais interessante! - aquele irritante sorriso mais uma vez se formava na face de Sethe.
-Às vezes, você exagera no “interessante”. - um similar se formava em Hit.
-Um pouco! Mas, na prática, isso só torna as coisas ainda mais interessantes, não?
-Idiota. Tá livre hoje?
-Nenhuma vez na minha vida estive ocupado no dia de meu aniversário.
-Droga, não te preparei um bolo esse ano.
-Você tá falando comigo! Já é presente o bastante.
-Nah, meu namorado não passa um aniversário sem bolo. Liga pros dois pombinhos enquanto eu encomendo um.
-Me deixa pagar dessa vez, pelo menos. - Sethe disse, enquanto pegava seu celular.
Hit colocou a língua para fora enquanto ligava para a padaria mais próxima. Sethe suspirou, sentindo uma mistura de alívio e medo. Ligou para seus colegas de casa e avisou-os da festa improvisada. Tendo feito isso, se voltou para a varanda. Mais uma vez, observou o mundo ao seu redor. Porem, dessa vez, admirava a beleza de tudo aquilo. Se sentia… adequado. Correto, preparado, sentia que estava aonde devia estar.
Após alguns minutos, foi levantado no ar por Hit, que o segurava pelas pernas. Foi colocado no sofá, com seu namorado deitando ao seu lado. A televisão foi ligada, as luzes foram apagadas, uma coberta foi colocada sobre eles.
Passaram quase o dia inteiro deitados ali, abraçados. Chegando as dezoito horas, quando o sol já se punha, seus amigos chegaram e se juntaram a eles. Junto, mais cobertas foram adicionadas. Seu pequeno forte era impenetrável, seja pelo frio do inverno que se aproximava, ou pela tristeza habitual dessa miserável cidade.
Nem chegaram a comer o bolo, simplesmente conversaram e se aconchegaram. Já eram vinte e cinco, apenas Sethe e Hit permaneciam acordados. Ou, pelo menos, eram os únicos acordados, até o som de vidro sendo quebrado permear a casa.
Sethe se levantou imediatamente, se atirando para fora do sofá. Os outros seguiram rapidamente, ansiosos. Hit entregou uma pequena faca dourada para seu namorado, que rapidamente colocou a ponta de da lâmina contra sua própria palma. Ouviram um grito. O vidro não era aqui, claro, era no vizinho.
Rom e Farin começaram a se acalmar, mas os outros dois mantiveram a guarda alta. Hit tentou agarrar Sethe, prevendo o que aconteceria, mas seu alvo se moveu mais rápido. Correu em direção à varanda, atravessando sua mão com a faca. Identificou a casa correta por meio de outro grito e saltou por cima da cerca, se arremessando em direção a ela.
Atravessou outra janela, se deparando com um homem mascarado frente a uma mulher caída no chão. O homem usava um terno sem gravata, calça social. Devia ter, aproximadamente, um e noventa. Não portava qualquer arma, mas Sethe podia sentir que era uma ameaça mesmo assim.
-Bem que havia boatos de um Despertado nessa área. - disse o homem. Sua voz era ríspida, transmitia seriedade, causava medo.
-Hm. - Sethe olhou para a mulher, que tinha cortes cobrindo seus braços, - Foge daqui, eu resolvo isso.
A mulher fez como lhe foi sugerido, correu o mais rápido que podia para fora de sua própria casa. Sethe começou a formar algo usando o sangue que caia de sua palma, manipulando-o com sua Marca. Na outra mão, empunhava a faca dourada, pronto para matar o mascarado.
-Não, ainda não. Algum dia, nos divertiremos, mas não será hoje.
O homem estendeu as duas mãos. Com a direita, fechou um punho, com a outra, abriu sua palma. Moveu o punho para baixo, chocando com a palma da outra mão. Sethe sentiu uma força o empurrando para baixo, como se a própria Terra tivesse concentrado suas forças para impedi-lo de se mover.
Caiu no chão, a pressão imensa sendo mais do que era capaz de aguentar. O homem começou a rir. Sethe o encarou por alguns instantes. Sua máscara tinha um buraco, revelando sua boca marcada por quatro cortes diagonais. Outro buraco em seu olho direito, com o esquerdo tampado. Piscou por um instante, e o homem desapareceu em meio ao ar.
Alguns momentos depois, Hit chegou, entrando pela porta principal. Ajudou Sethe a se levantar e a ir de volta para sua casa.
-Teve sorte de não se machucar demais, bobão. - ele falou.
-Tem algo de errado com aquele cara. Certamente é Despertado, pra começo de conversa. Além de que cortou aquela mulher sem nenhuma arma em mãos. E ainda por cima gerou alguma espécie de força sobre mim. Que tipo de Despertar te dá poderes tão distintos?
-Pensa nisso depois. Primeiro, descansar. Mandei os outros dois se esconderem no meu quarto, então vamos lá tirá-los do armário.
Como previsto, eles se escondiam dentro do closet de Hit, que os confortou por alguns instantes enquanto Sethe continuava perdido em seus pensamentos. Imploraram para que Hit deixasse eles dormirem ali. Se sentiam mais seguros perto dele, e de Sethe. Eventualmente, ele cedeu. Dormiram juntos na cama dele, enquanto seu namorado foi, sozinho, para a tenda em seu telhado.
Então lembrou da mulher. Furou sua mão mais uma vez e saiu desesperado, saltando de telhado em telhado, em busca dela. Olhou em becos, buscou através de janelas trancadas, quebrou algumas trancas. Finalmente, encontrou-a entrando em uma pequena escola, três quadras de distância de sua casa.
-Ei, ta bem? - ele falou, se aproximando lentamente.
A moça permaneceu em silêncio. Certamente ainda estava afetada pelo medo de antes, e ser aproximada por um homem desconhecido em um corredor escuro não ajudava. Sethe parou, notando seu desconforto.
-Relaxa, não vou me aproximar, não quero te machucar. Só queria fazer algumas perguntas, mas, apenas, caso não se importe de respondê-las.
-Tudo… tudo bem. Vou dar… meu melhor.
-Otimo! - ele falou, se sentando no chão, alguns metros de distância dela, - Vou direto ao ponto. Como ele… te machucou?
-Foi… foi assustador… como magia… ele simplesmente olhou para mim e meus braços começaram a sangrar! - sua voz ganhava energia, medo, - Seu olho tremeu e cai! Perdi todas minhas forças em instantes!
-Calma, respira. Isso tudo já passou. Você já foi de grande ajuda, só respondendo isso. Agora, preciso te pedir um favor.
-Quer que mantenha isso um segredo?
-Especialmente o meu envolvimento.
-Eu… não sei se posso….
-Por favor. Me arrisquei por você, só peço isso em troca.
-Mas… ele é um perigo para todos na vizinhança…. Não posso manter isso um segredo.
-Pode, pode sim. Você sabe que pode.
Ela sentiu algo subindo seu pescoço, como se uma serpente escalasse seu corpo inteiro, se preparando para atacar. Seu corpo se paralisou.
-Desculpa. - ele falou, - Realmente não quero te machucar, mas realmente não quero me machucar. Se meu envolvimento nisso se tornar informação pública, é questão de tempo até descobrirem que sou Despertado. Só… mantenha isso um segredo. Em troca, prometo que vou encontrar esse cara. E garanto, irei matá-lo.
Lentamente moveu sua cabeça para cima e para baixo, como se concordasse. Sethe pediu desculpas mais uma vez, retirando sua armadilha do pescoço dela. Retornou a sua tenda o mais rápido o possível. Seu coração doía por fazer algo assim, mas era simplesmente o único jeito de garantir sua própria segurança.
Dormiu, sendo atacado por dezenas de pesadelos.